Comecei a não dormir pensando em miséria num lugar de terra preta aveludada, num lugar que tudo que se planta dá, num lugar de mata atlântica. Reduto antigo de mandiocas com plantações, casas de farinhas e história. Com biju, tapioca e pirão. Lugar que chove e faz sol simultâneos. E tem mar, palmeiras, rios caudalosos, bananeiras. Ali vi muitas pessoas em estado de miséria, pra não dizer a maioria. No meu "não dormir",comecei a escrever sem parar sobre hortas, jardins, sobre as pessoas se fecharem na televisão, no teto, na alvenaria, sobre um dos aspectos da miséria relacionados a não saber lidar com os recursos existentes. Sim a miséria é (também) uma questão cultural. Não ter cultura pra lhe dar com a terra e o que ela pode ofertar, dançar, colher, alimentar, inventar, prover. Onde estão os nossos professores índios que tem desde a língua até o tom, toda a sabedoria pra lidar com isso? Andei tonta por esse lugar, andei, andei e fui parar na casa de uma família de olhar perdido, uma família bonita e desesperada. Um lugar com cheiro de vala, uma pequena chuva que alagava o bueiro e transbordava esgoto pra dentro. A mãe dessa casa chamava Pedrina, uma mulher linda escondida. Não dava mais pra gente pensar em nada, a vala tava subindo, as crianças tinham que parar em cima da cama e aquela televisão alta que não parava de anunciar: "salsicha perdigão kilo 1,99 só até quarta, só até quarta !!!" Como se fosse um soco no meu estômago que eu não podia sentir tamanho eram os baldes e mais baldes, os panos encharcados e torcidos, as crianças, as valas, o cheiro intenso. O marido da Pedrina fazendo biscate fora não voltava e tiramos um pouco da água que subiu, teve um resto que a gente não aguentou mais e invariavelmente aquela salsicha perdigão kilo voltava a gritar na TV substituindo por " açúcar união kilo 1,89, só até quarta, só até quarta!!!!!". Tinha um óleo, uma panela. Vi Pedrina muito cansada indo fritar um negócio pras crianças. A gente deu um abraço quando os ruídos do marido dela que estava chegando bêbado surgiram. Ela disse que ele ficava violento, que eu não podia ficar. Voltei pro lugar que eu estava, muito perto dela, a poucos quilômetros. No mesmo verde, no mesmo céu, na mesma terra preta aveludada que tudo que planta dá. O fato é que sai daquela cidade no dia seguinte muito cedo, e tinha que seguir, mas aquele lugar voltava como se fosse um arroto em toda a estrada. Aquele lugar é também a terra arrotando de tão aquecida pela quantidade de plásticos, lixos, gazes entupidos, gazes errados. A terra partida, a terra quebrada, craquelada, seca. Aquele lugar sou eu e você que somos miseráveis a cada dia que não sabemos nos relacionar. Eu não sou autorizada a falar de miséria mas sou poeta e minha única função é ampliar os significados de cada palavra. Poesia pesada é fundamental quando uma cidade cresce e acimentada por de baixo desses asfaltos e concretos ficam nossa maneira de lidar com a terra.